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Romana, de Rodrigues Marques


O caxiense Osmar Rodrigues Marques (1929/1999) era um contista de mão cheia. Conhecido como ‘papa prêmio’, levou diversas premiações pelo país ao longo de sua vida. Gostava sempre de citar personagens reais, muitos que conhecera em sua infância na terra natal. Uma dessas figuras ele imortalizou no conto ‘Romana’, que levou o 5º lugar no Concurso Nacional de Contos, em 1974. Romana era uma prostituta que viveu em Caxias na virada do século 19 para o 20. Muitos garotos da geração de Rodrigues Marques iniciaram a vida sexual com aquela senhora, que morava em um casebre na rua Aarão Reis, já chegando no ‘pé da ladeira’, ladeando o histórico Morro do Alecrim. Trago ao leitor do Portal Noca esse belo conto de nossa história. 

ROMANA

“O que disse Jovan? E o que fez? Acostumado, já, ou quase no nó da madeira da porta, a mão batendo com cautela, ansiedade em cada nervo aberto, dilatando, o sol na testa pálida e pintada aqui e ali, em todas as direções, com sardas geometricamente certas, históricas em suas distancias, mordeu o lábio e esperou. Esperar sempre foi o verbo. A mão semi-aberta, semi-sempre espera, embora seu dia quase nunca se iniciasse na hora do pão, do copo de leite sem açúcar como ele gostava, principiasse na desarrumação dos livros, na caça – ele dizia caça – aos objetos e até nas decisões.

Os amigos disseram. É fácil, Jovan. Você chega lá e fala assim. Para todos sempre foi e é muito fácil. Para ele, até o prato aberto em canja não tinha a intimidade que, como sempre, cama dá ao corpo.

Podia voltar ainda, contornar o Morro do Alecrim, onde o inicio foram as cabras, cabra já viciadas, um pouco ginasianas como ele e os outros.

Para chegar aquela posição de véspera importante contornara toda a ladeira beira-morro, atravessara o parque cercado pela grade incapaz de descobrir seu valor, dourada para o alto em suas pontas de retóricos desenhos (os anjos multiplicados em suas bochechas e bundas, elevando um laço de fita com palavras em latim) e de repente descobrira que o tremor nas pernas era uma experiencia acabrunhante, desconhecida, e por isso mesmo suas forças sem condição de recriar o equilíbrio de voltar.

Nos dias anteriores chegara a anteviver o que o aguardava. Ele um pouco entendia – pressentia – adivinhava que alfo de muito importante estava para cair sobre aquele instante, no qual parecia escutar o sangue em tumulo nas veias e no coração. Tudo aquilo o surpreendia com a surpresa de quem visse um carneiro entrar num bar com uma pele de homem debaixo do braço.

Poderia voltar, mas para que voltar se amanha ou depois, novamente, estaria frente aquela porta espraiada e ainda fechada com uma seriedade que presenciava a frase dita, mas não oferecia a resposta construída de palavras econômicas, decoradas, sabidas em toda cidade. Descobrirá, tendo empo para ficar que o vento quente que vinha soprando de repente cessou e logo as folhas adquiriram a antiga posição sem o mínimo vestígio de aragem desordenada.

- Entra, semvergonha. Eu sei o que tu queres.

Acredita quase ter ouvido, tanto a sabe de cor, tantas vezes a ouviu na sala de aula, a professora falando dos países da Ásia, na esquina do sobrado, a porta da mercearia, os meninos da margem do rio envelhecidos de atravessa-lo com o peso do sol nas costas. São apenas segundos, minutos que se beneficiam de sua espera e no entanto ele já pode perceber que a casa, em todo o seu interior, absorveu um pouco da noite anterior, embora o meio-dia ainda se demora no processo do tempo.

Estava de banco. A roupa de primeira comunhão cobria todo aquele tremor. O padre dissera também que desde o instante da comunhão ele estava livre de todos os pecados. Pois estava de alma isenta e poderia começar a pecar. Mesmo se aquela porta não se abrisse, o pecado – o outro – iniciaria a conta, pois aos colegas contaria que estivera com Romana na cama cheirando a mofo e suor. Não retornaria com a degradação da realidade não obtida. Criaria a sua.

Dona Romana, tem ovos? Ainda bateu na porta, na tentativa de desentocá-la. Ele a vira muitas vezes na rua e sabe – bem sabe – que nunca tivera intenção de ir até a casa da sexagenária sabida iniciadora de todos os meninos na cidade. Mas naquela mesma manhã, em frente ao padre, ele se sentira mais arrastado pelo demônio do que pelo Deus que o sacramento lhe oferecia. Reconhece que se quisesse teria evitado a que fosse arrastado, porem se entregou a tentação já com a vitória do demônio proclamada – renuncia prometida na capitulação. Tem tempo para dicar e ficará.

Pensa com vento no rosto. O padre dizia nas aulas de catecismo: “Os olhos deglutem e a alma rumina. Mas rumina em cima do corpo”. Ele não compreendia bem o que o padre queria dizer, entretanto sabia que relação – correlação – havia naquele estado de ansiedade e cansaço. A cotidianidade estava mudada, a rotina teria que se abrir em forquilhas. Naquelas manhas, era rude sabor. E muito mais rude foi ficar de sol no verniz dos sapatos novos apertados, fazendo e instigando calos como se aquele dia fosse de simples parada com ruas alvoraçadas pela solenidade desde agosto programada. Era e estava, bem o sabia.

Romana morta fora primeiro curiosidade: a porta, a taramela anulada em sua função de repente cedida e a visão do corpo pequeno ali estava, agora, parado na idade pela morte. Alguém, certamente, virá mais hoje mais amanhã, e como ele dará a descoberta: contará, tomará providencias que seu silencio não serão transmitidas. Ou pedidas.

A galinha empoleirada no espelho da carna – estranho cão de guarda – se assanha com sua presença e voa ruidosa para um qualquer rumo. Em casa será como se nada tivesse acontecido. Trocará a roupa branca pelo calção e gritará já do corredor.

- Elisa, avisa a mamãe que fui pescar mandi no porto da Galiana”.


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