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Fábio Kerouac

Um poeta caxiense em Hamburgo

Voltando pra Casa


“Esta é a sua última vez, né, Senhor Fabio?”, me disse Herr Klein, o careca rigoroso e que sempre anda impecável, enquanto espetava agulhas nas minhas orelhas.

“É, mas eu acho que na clínica diária eu vou ter acupuntura”, disse eu.

“É provável”, falou ele e passou depois a aplicar acupuntura no meu vizinho de cadeira, o René. À minha frente eu vi a desinteressada nova paciente, que depois da saída dos cuidadores, além do Herr Klein havia a presença do Herr Albinus, me perguntou que hora acabaria a sessão de acupuntura.

“Sete e 20. E você tem medo de agulhas?”, perguntei.

“Eu não gosto”, disse apenas e eu fechei os olhos para me concentrar ouvindo a música que tocava no aparelho de música. “Essa doidona não tem cara de quem vai se curar, não. Ela vai cair na primeira balada assim que sair daqui”, pensei.

Sete e dezoito comecei a tirar as agulhas das orelhas e outros me seguiram. Saí e fui para o Stützpunkt tomar os meus últimos comprimidos, em seguida fui para o Café e ali sentei com Ana e Michel, que me deram o email deles e eu correspondi dando o meu enquanto tomávamos café.

Após o café desci com um chá na mão e lá fora me detive diante da porta principal e dali vi à minha direita alguns pacientes, sete deles, sentados na calçada e no chão fumando e imaginei que esta cena eu não veria mais, aliás eu não queria ver mais! Eles parecem levar numa boa estar ali, mas eu não! Eu não deveria estar ali se eu não tivesse cometido os erros que cometi. Que me sirva de lição!

Fui dar minha última volta no parque e vi cãezinhos com seus donos, pessoas correndo, pessoas caminhando, ciclistas e mamães com seus bebês. Voltei do passeio e fui direto ao Stützpunkt e perguntei pelos papéis da minha "soltura".

"você já tem as suas coisas prontas e o guarda-roupas vazio?, me perguntaram.

"Sim", respondi.

"Pois me dá as chaves que eu devolvo os 20 euros da cautela", me disseram.

"Um momento, vou buscar minhas coisas e meu computador que ainda está lá", contei e saí, tendo voltado 5 minutos depois. Recebi os 20 euros, o relatório da minha alta médica e um atestado da minha estadia ali. Dei até logo e disse que não voltaria, apesar de ter gostado muito de ter estado ali. Alguns cuidadores presentes ali me desejaram boa sorte e saí.

Lá embaixo eu vi Catarina ao longe e acenei pra ela dizendo adeus, ela correspondeu e eu fui em direção à Estação Friedrichsberg onde peguei o trem às 8:37. Desci em Jungfernstieg com a minha pesada mochila e uma sacola com um tênis e minha sandália Hawaianas ouvindo Rudy do Supertramp, ali vi pessoas indo apressadas ao trabalho, eu ia caminhando devagar, sem pressa de chegar em casa e aproveitando o passeio pela avenida que eu não ia sóbrio e sem ressaca desde muito tempo.

Durante o mês de abril e maio daquele ano eu cheguei a ficar 1 mês e meio sem beber e eu cheguei a estar ali, passeando na Jungfernstieg e imediações, mas naquele momento eu tinha na cabeça a ideia de voltar a beber em pouco tempo depois da pausa que eu estava fazendo, mas desta vez era diferente, eu não estava fazendo uma pausa, eu estava deixando o álcool e eu acabava de sair de uma clínica onde fui aprender a controlar o meu vício. Eu pensava nisso quando entrei na Grosse Bleich ouvindo A Soapbox Opera e quando veio Asylum ("Don´t arrange to have me sent to no asylum") algumas lágrimas ameaçaram cair.

Às 9h08 eu entrei na Wextrasse e ali vi uma garrafa vazia de Flensburg próxima a uma lata de lixo, provavelmente deixada ali para algum homeless, e repeti Asylum antes de chegar à Grossneumarket, que eu já avistava ao longe. Atravessei-a e às 9h15 cheguei na esquina da Neanderstrasse, ali parei por alguns instantes e fiquei olhando para o balcão e as janelas do meu apartamento, que fica no primeiro andar. De repente fui despertado dos meus pensamentos por gritos que vinham do outro lado da rua, na outra esquina e em frente da padaria Datbackhus. Ali um funcionário do supermercado Rewe, que fica embaixo do meu apartamento, vociferava contra um homem cambaleante, bêbado e meio atordoado. O funcionário tinha em uma das mãos uma garrafa que parecia ao longe ser gin ou vodka. Não preciso dizer que o homem em estado deplorável tinha surrupiado a garrafa do supermercado!

Deixei-os ali e travessei a rua, passei o portão do nosso complexo de prédios e cheguei à porta do nosso prédio, abri-a, peguei o elevador até o primeiro andar e abri a porta.

"Tadaima", disse eu.

"Wakarinasai", disse a minha esposa que estava sentada em frente ao seu computador. Ela levantou e veio ao meu encontro. Abracei-a e a beijei.

"Você está em casa, que bom!", disse ela.

"Sim, estou em casa e dessa vez estou limpo, sóbrio", afirmei.

Obs.: Trecho final do livro Um Alcoólatra na Psiquiatria Alemã (ainda inédito).


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