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Fábio Kerouac

Um poeta caxiense em Hamburgo

O Alcoólatra na Psiquiatria Alemã (trecho)


Dia 16

Hoje acordei com o despertador às 5h20, levantei pisando em ovos e fui ao banheiro, lá tomei um banho demorado. Quando saí do quarto, já banhado e cheirando a perfume barato, fui com meu laptop rumo ao refeitório, no caminho encontrei a cuidadora de plantão. Eram 5h44 e dei bom dia e ela fez o mesmo. No refeitório, todas as luzes estavam acesas, mas ninguém estava ali, apenas vi um livro aberto sobre uma das mesas a ao lado dele uma xícara com chá. “Será que a mulher que lê e fuma voltou?”, pensei. Para matar a curiosidade eu fui ver o título do livro: Buda Rebelde (Partida para a Liberdade) de Dzogchen Ponlop Rinpoche. Nunca ouvi falar! “Só pode ser coisa da Eva, a louca”.

Bingo! O livro era de Eva que entrou pouco tempo depois e foi direto ao livro, ao me ver, deu bom dia, pegou o livro, o chá e foi sentar no sofá. E eu perguntei: “Cadê o Paul, Eva?”. “Ele foi para casa”, respondeu ela.

“Mas ele não volta, não?”, perguntei. “Ele foi de vez. Ele não aguentava mais ficar aqui”, disse ela. “Eu vi vocês ontem conversando e vi que ele estava chorando”, comentei. “É que aqui foi muito para ele. Coitado.”, comentou ela. “Eu notei a impaciência dele ontem depois do almoço, quando ele disse que sentia falta de um cigarro de maconha. Ele queria fumar um joint!”, revelei. “Eh! Fazer o quê?”, perguntou Eva e começou a ler. Eu a deixei em paz e comecei a ler notícias nos jornais online. Às 6h, vi Nadine passar em direção ao elevador, ela ia fumar. Às 6h05, apareceu o amigo da Lena, o cara mal-encarado, pegou um café, veio até Eva e começaram um papo animado que acabou em lembranças de ambas as partes. “Eu cheirei muita cocaína e fumei marijuana. Mas eu não quero mais. Eu quase acabei com a minha vida”, contou ele.

“Eu também não quero, não! Mas é difícil esquecer, né?”, falou ela. “Não, ninguém esquece!”, concordou ele, que se virouquando Nadine entrou e pegou um café. Eva levantou de repente e propôs a ele descer e fumar. E foram. Quando o relógio marcava 6h33, apareceu Jochen bocejando, pegou um café e saiu. Helga apareceu dez minutos depois e, às 6h48, surgiu André, ambos pegaram café e foram em direção ao elevador. Mas antes de sair André me perguntou: “Você dormiu no refeitório, Fábio?”. “Porque ainda é cedo e você já está aqui escrevendo!”, respondeu ele mesmo. Cinco minutos depois, desci com um chá de hortelã na mão e a primeira pessoa que vi foi a mulher de muletas de cócoras fumando. Ela estava na zona proibida para fumantes, que fica em frente da entrada da Casa 2. Passei pela cabine de fumantes e ali vi Jochen, Astrid e o cara mal-encarado. Dei uma volta e encontrei a polonesa com seu andador e lhe dei bom dia, ela fez o mesmo. Na minha caminhada, eu pude observar pessoas saindo do seu plantão noturno na Casa 2, por outro, vi também gente chegando para iniciar o seu turno. A temperatura estava em torno de 18° graus e o tempo estava fechado, o sol ainda não tinha mostrado a sua cara e fazia um frio para quem estava só de bermudão e camiseta, como eu.

Resolvi subir para o meu quarto, peguei o meu iPod e fui para o refeitório. Felix estava ali fazendo palavras cruzadas. Quando sentei ele perguntou: “Você vai sair hoje?”. “Vou... mas só depois do almoço”, respondi. “E você vai para onde?”, perguntou ele ainda. “Vou a um café num bunker com minha esposa”, revelei. “Em Feldstrasse?!”, questionou. “Não, não. Eu moro a 7 minutos, caminhando, de Feldstrasse e o bunker dali não tem nenhuma novidade para mim. Nós vamos num bunker em Wilhelmsburg. Lá tem um café novo com vista para a cidade”, contei e ele me deixou quieto e quieto fiquei até o café da manhã, quando tive a companhia de Helga, André, do próprio Felix, Eva, Dieter e o novo gordinho, Guido. Ele estava conosco devido ao excessivo consumo de álcool e veio de longe para curar o seu vício, ele veio de Múhlheim, na região do Ruhr. “Quanto tempo você vai ficar aqui?”, perguntou André ao gordinho Guido. “Doze semanas.”, disse ele. “Nossa! Doze semanas aqui? Eu não consigo imaginar!”, comentou André. “Mas, André, ele não é daqui, não mora aqui em Hamburgo. Aqui ele é turista”, interpelei eu. “É por aí...”, disse Felix. “Eu até já comprei um guia turístico de Hamburgo. Quando eu puder sair daqui vou me misturar aos turistas normais e passear com a câmera na mão”, disse Guido e caiu na gargalhada. “O gordinho é animado”, pensei, e ele provou isso ao dar aqui e acolá algumas tiradas. E Guido era uma das 13 pessoas presentes na sessão de acupuntura, ele sentou ao lado de Dieter, ambos sofreram para abrir o pacote com cinco agulhas. Jochen, que estava ao lado do gordinho, mostrou para os dois como fazer e os fez levantar para desinfetar as orelhas antes que a cuidadora responsável fosse até eles. Naquele momento, eu dei uma olhada na sala e contei quantas pessoas estavam ali e notei que Franziska e eu éramos os únicos ali da velha guarda, do pessoal que estava na minha primeira semana na Casa 2. Senti um pouco de nostalgia, senti a falta de Britta, de Marion, do Frank e do lituano. Comentei isso com Franziska depois da sessão a caminho do refeitório e ela foi categórica: "A roda da vida, Fábio, continua a rodar”.


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