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Fábio Kerouac

Um poeta caxiense em Hamburgo

Numa casa de idosos


(Trechos do livro O Cuidador de Velhinhos Alemães)

1.

Herr Mayer estava sentado na cama quando entrei no quarto dele; fui levado por Martina, a única cuidadora de idosos no terceiro andar naquela sexta-feira – eu era o estagiário e devia seguir as ordens dela. Com muito prazer, pois Martina é muito simpática!

– Fabian – ela demorou a aprender o meu nome -, vamos ao quarto do senhor Mayer, trocar as cobertas da cama rapidinho e depois fazer uma pausa. Indo os dois a troca pode ser rápida. Eu fui e, ao entrar, vi descansando numa mesa um livro, a biografia de Johnny Cash. “Nossa, o cara está lendo Johnny Cash? Deve ser doidão ou entende muito de música”, pensei. E a partir disso fui reparar no senhor Mayer, que tinha um curativo na perna direita. “Eu não sabia que aqui tinha gente jovem”, matutei ao notar que Herr Mayer aparentava ter uns 55 anos, mais ou menos, apesar de ter os cabelos completamente brancos.

Antes que eu chegasse a uma conclusão equivocada, Martina me mandou pegar algumas capas para dois travesseiros pequenos e para o futon. Quando saí vi Martina trocar o pano da cama com o jovem morador sentado na cama e com os pés em cima dela. Achei aquilo estranho para uma pessoa que demonstrava lucidez. Quando voltei ele fez questão de ele mesmo trocar as capas dos travesseiros; a cuidadora tentou dizer que esse era o nosso trabalho, mas ele não se deixou convencer. E o fez enquanto eu saía e deixava Martina com ele.

Fui pra pausa e ali fiquei imaginando quem seria o senhor Mayer. Tomei café, estudei um pouco, cochilei, naveguei na internet pelo smartphone, sempre me perguntando quem era aquele conhecedor do cantor maldito de country music. Fui averiguar, fui ver a ficha do enigmático senhor que só fui conhecer no meu quarto dia por ali.

Na primeira página do prontuário de cada Bewohner (morador), ali onde eu estou fazendo estágio, tem o nome completo dele, a data de nascimento, o local onde nasceu e as enfermidades que o acompanham. Geralmente três, quatro, cinco, seis... E não era diferente com Herr Mayer: ele tinha nascido em 1956, tem hepatite C, anemia, carência de vitamina D, insuficiência renal, limitação das funções motoras e duas outras coisas que não entendi. Ah, não sei se isso é doença, mas lá no prontuário dele tinha ainda abuso de drogas.

Bem, a função do cuidador é evitar que o idoso morra, e nós estamos ali para que isso não ocorra com o senhor Mayer, pois, segundo li na biografia dele, a da ficha, ele tem medo de morrer, se considera muito jovem. Eu, na minha opinão sempre errada, acho que ele deveria se apegar a Deus, mas ele, ex-evangélico, não acha que a religião tenha algum valor, como também não tem valor uma vida sem alguém, como a dele, que está sem parceira há cinco anos porque a mãe da sua filha o deixou. A filha mora em Arensburg, onde ele nasceu, e mantém contato com o enfermo, assim como a sua mãe e amigos.

Herr Mayer era fotógrafo numa agência de publicidade e tocava guitarra.

2.

Fiz a barba do senhor Jung com ele pelado e sentado no vaso sanitário; antes tive que limpar alguns cacos de vidro no chão do banheiro próximo à cadeira de banho dele. A cortina e a parede próxima à cadeira desse cantinho do banheiro estavam sujos de Coca-Cola ou algo parecido. Deixei-o no vaso enquanto ele me pedia pra eu fazer a barba.

– Não se preocupe, Herr Jung. Vou fazer a sua barba, depois dou um banho no senhor.

– Você pode?
– Sim, eu posso.
E o banhei depois de fazer a barba, coloquei fralda nova, roupa limpa e o levei até o elevador e em seguida ao quarto andar.

Voltei e fui ao quarto da senhora Winkler; ela estava deitada, como sempre, com o mesmo pijama e o mesmo sorriso.

– Frau Winkler, sou eu, o estagiário. Vamos colocar a meia? Acho que já estou prático em colocar meias.

Ela sorriu. Acho que se lembrou da minha dificuldade na primeira vez. Frau Winkler é independente, ela não precisa de fralda e nem que a banhe, ela só precisa de ajuda pra trocar de roupa, colocar a meia contra trombose e...

– E o cabelo? – perguntou hoje quando eu já ia saindo com ela para o quarto andar.

– Desculpe, Frau Winkler. É que não estou acostumado ainda. Prometo não esquecer amanhã!

Com um pente um pouco molhado a penteei e prendi o ralo cabelo dela com uns grampos que estão sempre na cabecinha dela. Missão cumprida, fui levá-la ao elevador e a acompanhei até o refeitório do andar superior.

3.

Voltei ao terceiro andar e fui bater na porta da senhora Kirschfeld; ela estava deitada toda coberta. De onde eu estava, só dava pra ver o seu rosto ossudo e os grandes olhos.

– Vamos levantar, Frau Kirschfeld?
– Ja... (sim...).
– Vamos levantar bem devagar, ok?
– Mach, was du willst... (faça como quiser).
E eu fiz. Levantei as duas cobertas que a cobriam, tirei a calça do pijama ali mesmo, a sentei e tirei a blusa do pijama. Só de meias, que ela não queria tirar, fralda e uma finíssima calcinha que segura a fralda, ela foi para o banheiro: abaixei estas duas últimas e a fiz sentar no vaso sanitário; com ela sentada as tirei e levei junto as meias. Com água morna lavei o corpo dela com um pequena toalha molhada nas pontas, vesti-a e a coloquei numa cadeira de rodas. O destino dela era o quarto andar, o meu também.

– Fábio, Herr Krüger está sozinho no quarto andar, você pode ajudá- lo? – perguntou Martina. E voltei da entrada do terceiro andar.

No andar de cima encontrei Herr Krüger e ele me levou ao quarto da senhora Schmitz. Ele me apresentou e disse a ela que eu ia cuidar dela e levá-la para o café da manhã.

– Não, eu não quero! Eu quero uma enfermeira – disse ela secamente. Herr Krüger olhou pra mim e emendou:
– Vamos então para o quarto da senhora Dietrich. Ali fui apresentado à anciã, que estava deitada sem cobertor:

– Está quente aqui – justificou ela.

– Frau Dietrich vai ao banheiro na cadeira de rodas, ali ela é colocada na cadeira de banho, quando ela quer. Senão ela pode ser asseada no vaso mesmo. Se precisar de ajuda é só chamar – disse o diretor do asilo, saindo.

Usando a técnica de transferência da cama pra cadeira de rodas aprendida na escola coloquei Frau Dietrich na cadeira de rodas e a levei para o banheiro; ali a sentei no vaso sanitário. Lavei o rosto dela, os braços, as costas, os seios e a barriga, lavei as pernas e os pés.

– Vamos levantar devagar pra eu lavar suas partes íntimas, Frau Dietrich.

Levantei-a com muita dificuldade, com ela agarrada a uma das bases de apoio colocada dos dois lados do vaso sanitário.

– A senhora pode confiar em mim, Frau Dietrich.

– Dói, dói muito... – e ela se sentava antes que eu pudesse lavá-la entre as pernas e no traseiro.

Na terceira tentativa consegui. Para colocar a fralda e a calcinha foi mais difícil ainda, mas consegui. Suando, dei uma saída deixando-a sentada ali; fui ao guarda-roupa dela escolher alguma roupa. Acho que demorei ali dois ou três minutos e voltei. Quando entrei no banheiro senti um cheiro estranho, mas não me preocupei. Ofereci a ela um blusa listrada e pedi que levantasse o braço direito; quando fui segurar a mão dela vi que estava suja de merda.

– Frau Dietrich, de onde vem isso? – perguntei dando risada e já imaginando o que teria acontecido.

“O vaso sanitário é convidativo pra pensar, pra sonhar e pra cagar”, pensei. Acho que ela aproveitou para defecar...

Limpei-a, troquei a fralda, a vesti e a levei para o café da manhã.



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