PUBLICIDADE

Responsive image

Wybson Carvalho

Recanto do Poeta

Poesia e filosofia


O filósofo é um pensador que escreve; o poeta é um escritor que pensa. Pode-se assim apresentar o corte entre os ofícios, de modo tipificado. Realce-se, de pronto, que se trata de um enquadramento exemplar, com o que se justifica de antemão os exageros. O mais importante é que o procedimento não se dê por simplificações. Na distinção dos ofícios, dedicação maior aqui se dará ao campo da filosofia, onde o pensamento se pauta, desde os primórdios, pela busca de uma validação para o campo da razão teórica, o exercício da crítica, a lógica da argumentação, daí o diálogo, a decomposição analítica, a compreensão etc. O que há de fundamental é, sobretudo, a distinção do pensamento como busca da "verdade". No âmbito geral da filosofia, este texto aborda o pensamento de Nietzsche, posicionando-o em relação à "tradição" filosófica, com o intuito de mostrar como ele se distancia, ao entrar em permanente atrito, ao firmar uma posição de "transvaloração", vale dizer, ao procurar estabelecer a supremacia da expressão sobre a argumentação, do estilo sobre a lógica, da fragmentação sobre a sistematização, do imagético sobre o teórico, do artístico sobre o científico. Fez filosofia, e não poesia. Também porque tinha que se diferenciar em um campo de problemáticas. Nesse sentido é que ele é essencialmente um filósofo, filósofo "de fora" no domínio filosófico, e só o podia ser numa operação de atravessamento tormentoso, revoluções valorativas, transvalorações da filosofia. E, talvez a principal delas, o pensamento da verdade como produção e invenção.

É sabido que a história da filosofia é feita de cortes e da emergência de pensamentos únicos, ao mesmo tempo em que há relações, apropriações e continuidades. O pensamento de Nietzsche traz em si os dois aspectos, mas se relaciona na forma de cortes, promovendo um encontro entre filosofia, arte e vida, com uma radicalidade desconhecida. A crítica nietzschiana, o exercício da transvaloração, é transgressora. O roteiro transgressor é pretensioso, ousa enredar razão, moral e linguagem, com o que o pensador pôde atuar por muitos flancos ou de várias maneiras. Neste texto, abordaremos essa radicalidade numa perspectiva de luta, um flanco decisivo de posicionamento, que impacta diretamente sobre o modo clássico ou convencional de se pensar a filosofia, abrindo-se para territorialidades e estratégias outras. No caso, a postura estilística assumida por Nietzsche, em uma fórmula filosófica que transgride, na comunicação das ideias. Fazer pontuações a respeito dos elementos envolvidos nessa transgressão é o veio principal do texto, especialmente para destacar a assimilação de recursos poéticos e a desocupação, não com o conceito como imagem-significativa ou ideia, mas com a formalização ou sistematização, com a "teia dos conceitos". Precisamente por conta da liberdade metafórica e da fragmentação textual praticada por Nietzsche é que poderemos, então, suavizar o corte inicialmente estabelecido entre filosofia e poesia.

Ítalo Calvino tem um instigante texto em que trata da "luta" entre "filosofia e literatura", a qual se desenrola a partir de diferentes estratégias em torno da mesma "matéria-prima", a palavra. A confrontação é reveladora de que "as palavras, como os cristais, têm faces e eixos de rotação com propriedades diferentes, e a luz refrange diferentemente, conforme a maneira como esses cristais-palavras estão orientados, conforme as lâminas polarizantes são cortadas e sobrepostas." . Na procura de se decifrar esse jogo imagético, de fato, vemos que a escrita é bastante valiosa aos filósofos no desempenho do seu trabalho reflexivo, todavia, o é como meio para a expressão correta, por vezes também agradável, dos pensamentos. Todo filósofo, como "escrevente", preocupa-se com a expressão das ideias, é óbvio, e há expressivas filosofias em que o autor se comporta como um estilista de ideias. Deleuze cita alguns franceses que "escrevem muito bem", como Bérgson, Descartes e mesmo Augusto Comte. A lista de bons escritores na "história da filosofia" pode ser estendida no tempo e no espaço. Porém, mesmo no mais refinado discurso, o que predomina é a busca pela organização consistente de ideias, e, para tanto, as palavras tendem a se colocar, sobretudo, como utensílios linguísticos articulados à guisa de produção de enunciados semanticamente coordenados. O que predomina no âmbito filosófico é o uso das frases essencialmente para compor interpretações, estabelecer proposições, exprimir sentidos conceituais, formular respostas. Assim, a despeito da qualidade maior ou menor da escrita, o que prevalece é a condição de o filósofo, em cadência reflexiva, criar e problematizar ideias, tarefa que, a rigor, pode se realizar à revelia do problema do estilo ou mesmo, frequentemente, contrário à estilização, quando as palavras e as frases são tomadas com reservas, como um desvio perigoso, caso não estejam, com firmeza e coerência, presas a um sistema de argumentação. Os "cristais-palavras" filosóficos estão orientados ao esclarecimento.

Se, por outro lado, consideramos o poeta, por mais que ele pense, por mais que as ideias façam parte elementar da sua criação, por mais que as suas frases ou os seus versos carreguem sentidos - afinal, ele também quer dizer algo -, a escrita lhe é tão valiosa que a sua arte por vezes pode ser definida como o primado da composição de palavras e frases, com vistas à potencialização imagética. Dependentes do regime estilístico das palavras, as ideias poéticas se subordinam ao imperativo de uma escrita possante, imagética, expressiva, escrita fim e não meio. Exercer a escrita poética é entrar num plano de expressividade imagética. As ideias apresentadas em um poema só dizem de sentidos porquanto operam, primariamente, uma estilização de imagens e sons. Na poesia, as palavras, tal como um cristal translúcido, estão orientadas de modo a gerar iluminuras e sobreposições imagéticas. Distintamente do que se passa no ofício filosófico, o importante é que as ideias poéticas não têm caráter proposicional, argumentativo, sistemático e conceitual, estando, por consequência, a poesia fora do "problema da verdade", ou do tratamento da verdade como problema, esse grande espectro a rondar a história da filosofia, como tema ou ideal. Há verdade numa poesia, mas ela não é da ordem de uma conclusão semântica ou de uma clareza expositiva. A verdade da poesia depende do seu brilho e da lucidez imagéticas. No essencial, pois, na medida em que um escritor confere tratamento superior às palavras e as dispõe em descompasso com logicismos semânticos, com objetivos conceituais e com critérios de verdade, mais poeta é potencialmente o seu pensar.

Quando um poeta de expressão filosófica, como Fernando Pessoa, avaliando a escrita de sua criação define um "poema" como "a projeção de uma ideia em palavras através da emoção", ele, ao mesmo tempo em que faz da ideia o motivo da poesia e da emoção, o princípio condutor, realça a palavra como o material por excelência do fazer poético, pois é a palavra que se projeta e movimenta. É próprio do ofício poético trabalhar com ardor a palavra. Pensemos também em Manoel de Barros ou no que se denominou "concretismo", dois estilos poéticos bem distintos, mas em que se vê a experimentação de palavras para efeito imagético, não importa se inteiras ou quebradas, se fraseadas ou decompostas. Pode-se considerar que, em Fernando Pessoa, a presença das ideias é mais marcante, a ponto de vazar de certos poemas um teor filosófico acentuado. Todavia, é sobremaneira a pujança performativa das palavras o que faz, da escrita de Pessoa, poesia - ou literatura, se se considera a sua definição acima, uma vez que tanto a poesia como a prosa se valem da expressividade, da artimanha e da justeza das palavras para carrear ideias e exprimir emoções.4 Álvaro de Campos, um dos seus heterônimos, é um poeta "proseador". Não avançando no âmbito da (delicada) distinção entre poesia e prosa, sugerimos apenas a ideia de que a força poética se afirma numa escrita, na proporção em que a palavra é valorizada, engrandecida. Guimarães Rosa, Júlio Cortázar e Robert Walser, dentre outros, são exemplos de proseadores com alma poética, com exímio domínio da palavra e do ritmo.

Como invenção livre de jogos de palavras, a poesia requer uma qualificação essencial a distingui-la razoavelmente da filosofia. Trata-se do ritmo. A poesia exige o ritmo como o seu Leitmotiv, sua aspiração maior, sua intensidade concentrada. O ritmo é a arquitetura móvel das palavras, dos sistemas de imagens, metáforas e símbolos. Se a arte é uma atividade superior, ela o é no sentido da configuração de conteúdos com uma qualidade (ou grau de inventividade) que não se vê em nenhuma outra área da cultura humana. A arte poética é a escrita que melhor traduz impressões, sensações, sentimentos e emoções, em uma arquitetura de signos linguísticos. O ritmo é a espinha dorsal da alma poética, alma que tem nas palavras a sua carne, o seu sangue e a sua voz. A força performática das palavras e o poder da boa solução rítmica se irmanam como verdadeiras potências poéticas.

"A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei", sentenciou Manoel de Barros. Escrever poeticamente é colocar as palavras para brilharem, dançarem, tocarem-se, esfregarem-se, cadenciarem-se, distinguirem-se, dispondo imagens e ideias em meio à livre orquestração estilística. A poesia transgride na palavra para transgredir no que a palavra transmite. Os poetas são amantes de uma escrita burilada com as palavras, não têm por que temer delirar nas imagens, pois é esse o maximum do ofício poético e a ambição peculiar do autor. Em contrapartida, a ambição do filósofo está ligada à problematização de enunciados e à sistematização de teorias, com o que se procura submeter as palavras a um regime disciplinar, de modo a instrumentalizá-las para viabilizarem o que se intenta, a saber, a clareza das ideias. Em face de tal intuito, questões relativas exclusivamente à forma - como o é a preocupação poética com o ritmo e linguagem - tendem a ser secundarizadas em nome da excelência e da consistência lógica no conteúdo enunciativo. O modo como a filosofia se liga ao conteúdo leva a certo desprezo da forma ou a um convencionalismo mais rigoroso.

A filosofia, em razão de sua condição enunciativa, precisa se subdividir (conceitos, itens, capítulos, aforismos etc.) A poesia, por seu turno, parece ainda mais atomizada por conta da poderosa presença da palavra. Contudo, na exigência da cadência, as palavras precisam se tocar, com sutileza, explorando-se as potencialidades de articulação dos seus elementos: esgarçamento de "carnes", mistura de "sangues", composição de "vozes". O bom acabamento de um poema corresponde à forma rítmica bem orquestrada, ao ponto de, por vezes, assemelhar-se a um ato estilizado de uma só inspiração. Isso se dá de modo que, ora as subdivisões se fazem quase imperceptíveis, ao se deslizarem numa quadradura final (como acontece em um soneto), ora cada subdivisão faz-se ela própria uma totalidade (como em O guardador de rebanhos, de Fernando Pessoa, ao que parece escrito numa toada só), ora, ainda, os dois fenômenos ocorrem a um só tempo (como em diversos poemas-fragmentos de Manoel de Barros, há uma composição, mas cada frase parece almejar sua real independência poética). Uma filosofia, por sua vez, será sempre uma somatória de subdivisões, quer se apresente como sistema de enunciados, como em Kant e Hegel, quer se apresente como coletânea de máximas, como em Montaigne e Nietzsche. Ao fim e ao cabo, a unidade filosófica assemelha-se a uma soma de ideias, a unidade poética, a uma solução de signos.

Concluiremos esta abertura ao texto com um pingue-pongue de contrastes. O poeta é um encantador de palavras, ao pô-las para cantar, dançar, brilhar - o que não invalida critérios técnicos; o filósofo é um enunciador de conceitos, que põe as palavras a serviço das frases e estas, a serviço das ideias. A totalidade e a vitalidade de um poema são resultados quase mágicos do encantamento das palavras; a totalidade e a vitalidade de um pensamento filosófico resultam da consistência reflexiva. Um poema vem a ser uma movimentação criativa de palavras, para tocar as sensibilidades, e essa carga afetiva especial sela o contraste da poesia com as reflexões filosóficas, que amiúde se mostram mentais, áridas e formais.Tipicamente falando, e não de modo exclusivo ou fechado, podemos assim comparar: a poesia, maestria da escrita, é sobretudo um edifício estilizado de palavras, enquanto a filosofia, exercício do pensamento, é um edifício coerente de ideias. A primeira é uma orquestração rítmica, a segunda é uma composição discursiva. A poesia é sensível, estilizada e compactada; a filosofia é mental, esquemática e fragmentada. Isso em sentido último e, não, exclusivo. Enfim, primariamente, uma quer afirmar impressões e emoções, a outra, reflexões e proposições conceituais.

Por Renarde Freire Nobre: Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil. E-mail: [email protected]


Comentários


Colunas anteriores

Poemas a sós

Instantes...           Há pouco tempo o sol e a lua se encontraram por minutos e, lamentavelmente, não se completaram em si próprios... pois, a natureza é a diversificada mãe dos astros...! Abandono e solidão ...!  ... teu silêncio e tua ausência invadem à minha alma e ao meu sentimento e se irmanam à leitura das páginas do teu livro. Sim, agora, sei os teus...
Continuar lendo
Data:24/04/2024 14:54

Poemas a incriminar

Oferta à vida  Haveria prata, ouro e diamantes, se eu preferisse caminhar certo pelos tortos e estabelecidos caminhos pautados em tua ambiência. mas, vesti-me do nada e rumei por veredas aziagas do meu inferno existencial a destruir ilações sobre nosso espaço.   Sentenciado  Inculpado, mas transformado num ser; enfermo, desiludido e tão só… sem horizonte a seguir e com inércia se alimentando de...
Continuar lendo
Data:16/04/2024 22:31

Poemas dantescos

Perdão  Natureza e obra eternas, unicidade ubíqua em onipotência e onipresença, — caí em tentações pecaminosas! livrai-me de insidiosa luz do fogo. mas não me deixeis nas trevas. não sou digno de beber do vinho e comer do pão! porém, lavai-me as feridas com meu próprio sangue, aliviai-me a dor para que sacie a minha própria fé, e, então, salvai-me do que fui ao...
Continuar lendo
Data:09/04/2024 17:21

PUBLICIDADE

Responsive image
© Copyright 2007-2019 Noca -
O portal da credibilidade
Este site é protegido pelo reCAPTCHA e pelo Google:
A Política de Privacidade e Termos de serviço são aplicados.
Criado por: Desenvolvido por:
Criado por: Desenvolvido por: